Sem fronteiras

Bhuvi Libanio
4 min readMay 20, 2022

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《registros aleatórios de uma jornada não planejada》

Registro II
Fluxos de consciência

“Diz-que-direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na ideia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois.”

— João Guimarães Rosa, em: Grande sertão: veredas

FLUXO 1
Chá preto com limão rosa, no copo de cristal. John Denver canta a luz do sol nos meus ombros. Lá fora, o vento sopra gelado e as roupas dançam no varal, brancas e ainda molhadas. Pendurei meu casaco vermelho também — ele estava limpo — , pendurei para livrá-lo do cheiro do tempo. Este tempo que já nem sei mais qual é. Agora que desisti de esperar talvez você apareça, mas se digo isso, talvez eu não tenha de fato desistido e então você não aparecerá. Minhas mãos estão ressecadas, meus dedos cansados, as pernas já não vão tão longe. O tempo é uma doença, mas nem toda doença é ruim. A vida, por exemplo. Sei que vou morrer de viver. Então apenas chegue, assim de supetão mesmo, acelere este coração que está escancarado. Faça-me perder o ar. Eu me entrego aos seus olhos, mergulho nesse mar e danço ao som do seu primeiro retrato em minhas retinas. Por isso, todos os dias, quando saio da cama, troco de roupa, limpo a casa, deixo tudo organizado. Faço minha oração. Sento-me em meditação. Miro o espelho, investigo a imagem. Cada dia desconstruo mais. Quero dessaber. Quero ser ninguém, ninguém entende a roda da vida, ninguém é eterno. Então posso esperar.

– Autor (des)conhecido.

FLUXO 2
Aprendi que a palavra “cachorro” ao contrário significa Deus. Certa noite, ouvi um barulho no portão. O som era agudo. Jurei ter escutado “estou com fome”. Corri para socorrer aquele ser faminto. Desde então, Orrochac dorme na cama comigo. Já fizemos algumas bodas. Ninguém entendia o nome dele, então inventei que era uma língua antiga, do tempo em que cachorros eram considerados deuses, daí o significado. Inventei também que a palavra no português deriva do latim que, por sua vez, deriva desse idioma. Um dia uma criança me desafiou a dizer o nome da língua. Foi fácil sair dessa. Mas com o dono da farmácia entrei em discussão — o sujeito é metido a saber de tudo, mas nunca soube me explicar a diferença entre dipirona e ibuprofeno — , ele queria me convencer que Orrochac não é deus, muito menos Deus e que a palavra nem existe. E eu perguntei, “o que é que existe, meu amigo, se tudo que não é natureza é invenção do ser humano?” Essa rusga aconteceu quatro dias antes de uma aula de inglês em que um amigo perguntou à professora como falar “cachorro”. Ela escreveu no quadro: “dog”. Alguns minutos depois, com o sol a se pôr, a sala ficou escura e ela ligou a luz, fechou a janela de madeira e abaixou a de vidro. Eis que o reflexo me revelou Deus. Assim, de repente.

– Autor (des)conhecido.

FLUXO 3
Chá de gengibre com cravo da Índia, na caneca de cerâmica. David Bowie canta a hora de abandonar a cápsula. Aqui fora o vento sopra. Fecho os olhos e me sinto na BR, de moto. “Fecha a viseira!”, escuto a instrutora gritar. Nessa hora, um galho passa por mim. Tudo passará. Folhas, areia, insetos, o passado, a saudade, o desejo. A chuva. A tempestade. E então, depois dela… Deito na outra ponta e olho para você. Depois que li aquele conto, não há barco nessas águas que não me façam lembrar o pai, a canoa, “a estranheza dessa verdade” que estarrece e o nada que acontece. “Ninguém é doido. Ou, então, todos.” Foi pai quem me ensinou. Mas os tempos mudam, devagar-depressa. Sinto um balançar. É o vai e vem do pêndulo que nos coloca suspensos, à espera do Cuco ou de ouvir o sino da igreja distante ou o gongo na porta do templo. Depois de… Nada é o mesmo. Tudo muda tudo. Depois daquele abraço, depois daquela conversa, depois daquele olhar, depois daquele copo d’água. Como saber se não vivê-los? Depois de sair da cápsula, ela não há mais. Resta “apenas” todo o Universo. Continuo do outro lado do barco. Em perfeito equilíbrio, navegamos. Somente quando combinarmos direção e tempo os corpos se tocarão sem afetar o equilíbrio. Por enquanto, o encontro é virtual. Para ser feliz é necessário coragem.

– Autor (des)conhecido.

Para ler o "Registro I" de Sem fronteiras《registros aleatórios de uma jornada não planejada》clique neste link https://bhuvi-libanio.medium.com/sem-fronteiras-2dcd475b96b2

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Registros aleatórios de uma jornada não planejada.

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