Sem fronteiras
《registros aleatórios de uma jornada não planejada》
Registro I
No tempo inventado pelo ser humano, este mês completou um ano que mudei. Tudo. Mudei tudo. E há um tempo, você me visitou. Acordei com vontade de te escrever e de escrever, porque muito do que já conversamos neste meu “vagão” veio à tona recentemente.
Bastante sutil, é a conexão entre tempos, espaços, pessoas. Somente o coração é capaz de perceber. Veja as ondas do mar: estão conectadas; impermanentes, efêmeras, têm o mar em comum — quebradas, são eternas. A existência quando assume um formato é muito breve. O que é uma onda no oceano inteiro?
Talvez o oceano seja analogia também para esta emoção que tenho em mim — de tão grande é sutil — não é possível enxergá-Lo inteiro, mas sua presença é perceptível. Imponente. É possível senti-Lo.
Hoje notei algo de semelhante entre a árvore desta praia e aquela que me acompanhou durante alguns anos da adolescência, na janela de meu quarto, na casa de meus pais. Ambas são solitárias, cresceram, envelheceram, perderam folhas. E seguem. Somos assim, não é verdade?
Em um daqueles dias, você me perguntou e lhe contei: foi um momento sublime, único, quando vi o rosto de Deus. De tão grande, Ele é imperceptível. É a conexão sutil entre tudo. Tudo. E é isso que sinto como emoção dentro de mim. Está em constante movimento, vibração… Na verdade, nem sei descrever. Se estou só, em silêncio, isso toma conta. Eu desapareço.
O corpo apenas nos localiza no espaço e no tempo do ser humano, ele é um dos formatos da existência. Senti isso quando senti que não sou o corpo, ou senti que não sou o corpo quando senti isso. Não sei. Por vezes, eu desapareço.
Nesse tempo do relógio, aprendi tanta coisa. Vivi tanto. Enxerguei tanto. Mas se eu pensar no oceano como um todo, enxerguei praticamente nada, vivi pouquíssimo. E é melhor assim — é melhor ser como o filósofo que sabe saber nada.
Gosto do silêncio do nada. É maravilhoso. Posso dizer que é meu local predileto. O nada. Lá, desaparece-se como matéria. Foi bom quando caminhamos juntos na sutileza do espírito, no coração, na suspensão do tempo, no espaço desvanecido. Em nós.
Se eu desenhar um quadrado nesta página e preenchê-lo de nada, imagino que você o preencherá mentalmente de alguma maneira. Tudo que é concreto é imaginado, é criado a partir de um ponto de vista, ou seja, é o que é visto de onde se está. Para enxergarmos a mesma coisa, é necessário sentir, acolher o sutil e se mudar, transferir-se para esse espaço, acolher essa grandeza, essa dor de ter tudo e nada dentro de si. A dor de deixar ir quem pensamos ser. A dor de derreter, de morrer. E de nascer.
Gosto de ser esse quadrado vazio. Tenho me sentido mais segura assim. Deixar ir minhas arestas e renascer em Nós. Gosto de ser forma nenhuma.
Há uma conexão muito sutil entre tudo o que existe. Senão nessa sutileza, cada um vê o mundo a partir de si. Aprendi que a paz está dentro de cada um — no fundo do oceano o silêncio é palpável , é incrível— , ela existe quando se busca apenas as próprias falhas; cada qual que entenda as suas.
A saída é para dentro.
Talvez tenha falado sobre isto, não me lembro: sua visita foi como um quadro pintado por Van Gogh, pinceladas leves, claras, alegres, alguns tons mais escuros. Foi como um sonho. Aquela noite estrelada, misturada com o campo de trigo e os girassóis, naquele quarto colorido e simples, com alguns comedores de batatas — eles são sombrios, mas guardam algo de inocente, das sutilezas da existência — e o terraço, o café, os barcos de pescadores. A lembrança é apenas uma brisa, que carrega em si cheiros e sabores e tons, que se misturam em uma aquarela também de sons. Não é assim a companhia do Amor?
É esse Amor o que nos conecta, ele desmancha fronteiras. Os ponteiros dos relógios dançam em Sua presença, mas nem são ponteiros, porque no Amor não há uma forma concreta de ser. Tudo se derrete diante Dele. Tudo se funde. “Água derramada no oceano torna-se oceano”, o Mestre me lembra. Talvez eu tenha que dizer: sua visita foi um quadro de Dalí?
Não há fronteiras. Não existe o outro. O que enxergamos são projeções da mente. Tempo e espaço são construções, conceitos. Somos mesmo sem fronteiras. Somos. Simplesmente somos. Antes do corpo, antes da palavra. E dessa forma, com-versamos.
É estranho enxergar o mundo assim? É estranho ver o mundo em Você? Em Nós? Derretendo-se; fundindo-se em Um? É esse Um que ressoa, não é?
Eternamente, A-Um. Sem fronteiras.
A ecoar.
No abismo.
Para onde
Salto agora.
Imbituba, 25 de abril de 2022.