Lista #1
3 min readFeb 14, 2022
Vinte e quatro reflexões sobre as quais ainda não escrevi

- Tenho uma constante sensação de que estou prestes a morrer.
Isso não é papo de vítima. Acredito que estamos todos assim.
Morremos em vários instantes. - O carro do Zé do Ovo vende picolé no verão. E ovos. R$15,00 a bandeja. Dos picolés não sei o preço.
- Mas o carro do Zé, o do afiador de facas, o de gás e outros vendedores passam muito rápido pela rua. Eu teria que sair correndo atrás deles. Seria melhor passar um carro vendendo uma corridinha pelo bairro com direito a afiar as facas, por exemplo.
- Esses carros estão em todos os lugares onde morei, no Brasil. Sempre rápidos, a não ser em Botafogo, no Rio de Janeiro, onde ele parava debaixo de minha janela.
- No verão catarinense uso cobertor, no inverno carioca usava ventilador.
- A questão sobre ser a mudança que você quer ver no mundo é que comportamentos só são perpetuados como comportamentos mesmo, não como palavras.
- Ninguém ensina de fato, falando. Ninguém ensina fatos falando. Ninguém fala de fatos, ensinando. Ninguém fala, de fato ensinando. Ninguém fala de fato. Ninguém ensina de fato. Ninguém é um fato.
- Há muito tempo não uso o adjetivo garrafal.
Eu poderia — e isto é apenas um exemplo, mas, de fato, eu poderia — escrever seu nome em letras garrafais. Seria um grito? O que pedem os gritos? Seria esse um fato? - Na mesa do restaurante, quando uma pessoa tem a cara emburrada e você lhe pergunta se está feliz com o jantar, ela sorri. A não ser que seja realmente mal-humorada. Neste caso, nada resulta em sorriso. #fato
- Na mesa sete do restaurante, a cliente disse que a comida tem gosto muito forte de coco. Na mesa oito, o cliente pediu por mais coisas com gosto de coco e saiu chupando um picolé. De coco. (Mas este não é vendido no carro do Zé do Ovo.)
- Todos os produtos que compramos, serviços que contratamos, presentes que ganhamos foram pensados e preparados muito antes de o considerarmos. (Até mesmo o corpo que habitamos?)
- Na mesa do restaurante, um casal sentou-se com uma criança. Na outra mesa, um casal com duas filhas adolescentes. A mãe do garoto disse que não era hora de usar o celular. Alguns minutos depois uma adolescente lia um livro, a outra cutucava o celular enquanto pai e mãe faziam o mesmo. O garoto fazia barulho com o canudo no copo de suco vazio enquanto pai e mãe cutucavam o celular. O que foi mesmo que eu pensei sobre educar?
- Aprendi que o aniversário de Valter é dia seis de janeiro. Talvez eu já soubesse, afinal, Banco Pan, Carrefour, Itaú e Serasa garantem há mais de cinco anos a presença desse homem em minha vida. Nem sei desse Valter. Nem do Banco Pan.
- Valter é um bom nome para uma personagem. Assim como Renato.
- Onde moro
não tem carteiro
tem poeta.
Só. - E no carro do Zé do Ovo,
não tem Zé. - Que ironia fazer Cuba Libre com Coca-Cola.
O primeiro porre que tomei em minha vida foi irônico. Do segundo não me lembro. - Revolucionário não é quem interpreta, julga, aponta o outro; mas sim, quem cria novos modos de viver.
O ativismo revolucionário é criativo. É consciente da armadilha da reprodução de comportamentos. - Na terapia de grupo, a psicóloga disse que a garota era sem sal. Demorou alguns anos para a mulher se dar conta de que o defeito estava na língua da terapeuta.
- Todo texto tem mais de um sentido.
Eu tenho seis. - Não acredito em dicotomias.
- Gosto de listas.
Não exaustivas.
E de listras também. - Sou queer. Por isso desejaram minha morte, chamaram-me demônio, algumas vezes.
- Na embalagem de amendoim há um aviso para alérgicos: contém amendoim. Na embalagem de leite: contém leite. Na de ovos: contém ovo. Quem diria!
(Imbituba, 14 de fevereiro, dia de São Valetim, aquele que celebrava uniões, em segredo.)