Registro XXVI ~ Da casca, o chá
Sem fronteiras《registros aleatórios de uma jornada não planejada》
Descobri que o suco de limão muda a cor do chá de casca de abacaxi: de amarelo claro translúcido para rosa claro turvo. Qual será o valor dessa descoberta?
Tantas coisas me aconteceram nos últimos meses, mas ainda que sejam tantas, elas são poucas, se considerarmos o número de coisas que aconteceram a cada pessoa do mundo nos últimos meses. Qual será a importância dessas coisas?
Sem pretensão de escrever um tratado sobre a urgência dos fatos, abri a tela em branco para ter lugar onde derramar sentimentos que me afogam. As palavras se repetem dentro de mim.
Sou o único ser humano que habita esta moradia. Guardo palavras, quando não as escrevo. Minha escrita é ato de desintoxicação. Do lado de fora, sintaxe, léxico, semântica são vida; dentro, a linguística me estrangula.
Domingo passado, enquanto Lou Reed cantava no meu computador, ao longe, vozes entoavam algum hino religioso. Como somos iguais na diferença!
Naquele momento eu me dei conta: tudo na vida acontece dentro de um espectro que vai do radical não ao radical sim. Como saber se não tentar? Pensamentos positivos deveriam ser muito mais aceitação do que desejo cego. A abertura para o espectro inteiro é necessária. Qualquer extremo pode causar dor.
Tenho apenas cinquenta anos e evito contar cascalhos no caminho. Prefiro observar os pássaros, brincar com os cães, conversar com os gatos – recentemente salvei a mosca que, presa à teia, estava prestes a se tornar jantar de aranha. Talvez eu tenha interferido na natureza, talvez eu seja parte dela. Há uma história por traz disso. Há história por traz de tudo, exceto do Big Bang.
Outro dia, cheguei em casa às 19:52. Clarice e Virginia estavam à porta, esperavam para sair. Olho para essas gatas e enxergo algo tão grandioso que às vezes evito olhar demais para elas. Quando minha filha morava comigo eu sentia algo ainda mais vasto. Aquele bebê, aquela criança, aquela adolescente, aquela mulher… Tudo pode lhe acontecer! Ela não passará por esta vida incólume, independentemente do que eu faça. Ela é grande, sempre foi, mesmo quando era tão pequena. Não me lembro qual foi sua primeira palavra nem quando começou a andar, mas nunca me esqueci do seu olhar no momento em que a médica a colocou sobre meu peito logo depois de tirá-la de dentro de minha barriga.
Engordei 20 kg na gravidez. Recentemente, conversei com uma gestante. Ela planejara tudo: no sexto mês, engordará apenas mais 7 kg até o dia do parto para adicionar pouco ao pouco que já adicionou – deixou o queixo cair quando lhe contei da minha adição. Eu tomava leite com Toddy, Quick de morango ou Nescau e a ginecologista me proibiu de fazer isso, porque “é alimento para criança, não para adulto”, ela me disse, ao que respondi, apontando para minha barriga: “ora! E eu estou alimentando quem?” Ao contrário dela, ri.
Falta-me agora plantar uma árvore. Já plantei Espada de São Jorge e ela vingou – vingar é diferente de vingar-se; o pronome reflexivo muda tudo, transporta-nos de uma ponta à outra da espada. Ela cresceu tanto que hoje tenho uma família delas na porta de minha casa. Reparei, por acaso, que em um vão entre a terra e o vaso é possível avistar uma folha nova, um embrião, que logo despontará. Está enrolada, encolhida – posição fetal. Tão protegida!
Que tudo desponte. Que tudo se revele. Da casca, faço chá.
Há um espaço grande dentro de mim. Nele, cabe um mundo. Por isso, gosto quando o Mestre nos desafia com um koan e vasculho aqui dentro para descobrir minha face original, “aquela que eu tinha antes de meu pai e minha mãe nascerem”.
Agora, sem hino nem Lou Reed, a noite sussurra. Foi ela quem me contou este texto. Que acabou.
Imbituba, fevereiro de 2024.