Registro XXIII — Fracasso

Sem fronteiras《registros aleatórios de uma jornada não planejada》

Bhuvi Libanio
3 min readJan 11, 2024
Fazendo o dever de casa.

Fracassei. Fracassei.

Repetir uma palavra até ela perder o sentido comum: fracassei. Dou risada. O computador sugere substituir a palavra por “fricassee”.

Fracassei. Insisto.

O primeiro fracasso do qual me lembro foi em uma noite de audição, em uma escola de música. Era 1984 (se não me falha a memória — para tudo o que conto, há que se ter um desconto!) e havia pais, mães, irmãs, irmãos e parentes na plateia. A partitura era ilustrada com um desenho do Pinocchio, mas ela não estava lá. O compositor, esqueci quem era. Talvez Haydn?

Naquela noite, fracassei. Quando sentei-me diante das teclas de marfim e de ébano para fazer conforme o planejado, praticado e esperado, errei a posição da mão esquerda, não uma oitava, mas uma nota acima. Criei uma bela cacofonia! Meus ouvidos reconheceram o erro, mas eu não quis parar: “no movimento de mãos cruzadas, resolvo a questão.” Mas não consegui resolver. Fracassei. A plateia aplaudiu assim mesmo. E assim mesmo, agradeci com a mão sobre a madeira preta lustrosa do instrumento, que estava de asa levantada e o interior à mostra. Que voo!

Depois de todos os estudantes se apresentarem, a professora anunciou meu erro e meu retorno ao piano. Caminhei até ele e fiz minha última apresentação. “Não tenho jeito para a coisa”, concluí. “Quero tocar violão.” Mas isso nunca aconteceu. Fracassei.

Depois desse, houve muitos fracassos: no ballet, na escola, no vôlei... Recentemente, fracassei mais uma vez: eu estava na lista final das classificadas; entretanto, não era uma das primeiras. Não ganhei o prêmio literário para o qual reuni poemas de Amor em um livro que intitulei “O livro das inutilidades amorosas” — porque disse Paulo Leminski, “a única razão de ser da poesia é que ela faz parte daquelas coisas inúteis da vida que não precisam de justificativa, porque são a própria razão de ser da vida.” Fracassei. Mas ainda acho que tenho jeito para a coisa. E tive vontade de ressaltar, engrandecer, valorizar esse e os outros tantos fracassos. O que menos quero fazer é reclamar deles, porque, afinal, todas as vezes que fracassei fui bem-sucedida. Também. Fracassei no Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres 2023. Tudo bem.

Agora, olhei pela janela e vi passar uma garota de cabelos lisos e molhados, saia azul-marinho e blusa branca, “andante”, gloriosa. Acabou de se arrumar para sair? Talvez. Ela saltitava, enquanto atrás dela uma senhora de passos apertados fazia gestos largos com os braços e movimentos frenéticos com os lábios, “allegro dramatico”.

Talvez eu tenha fracassado em minha tarefa de honrar o fracasso. Sei lá! Mas essa garota, o piano, a cacofonia, a asa aberta, o voo ao interior… E a música que toca sem cessar, mesmo sem eu notar, ressoaram fundo em mim.

Planos e expectativas fracassam. No fim, o que importa é ser fiel à Verdade, ao Amor. Eu sou fiel. E cacofonia faz poesia.

“Se nesse sistema eu não fracassar, é porque eu aderi a ele”.
– Pe. Júlio Lancellotti

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