Registro XXI ~ Um grande sonho
Sem fronteiras《registros aleatórios de uma jornada não planejada》
Eram cinquenta. Estavam espalhados pelo gramado, no pátio em frente a minha casa. Do segundo andar, do lado de dentro, eu os observava com a porta de vidro da varanda a nos separar. Eles pareciam distraídos. Cada um entretido com seu alimento.
No momento em que percebi a presença daquele grupo, eu traduzia um texto bastante poético que, naquele ponto, tratava da relação do eu lírico com a realidade e levantava a hipótese de tudo ser imaginação. Quando virei a cabeça para a direita — minha escrivaninha está encostada na quina de duas paredes, e eu, sentada de frente para ela, fico de lado para a porta da varanda –, em uma pausa para apreciar a paisagem e descansar as vistas da luminosidade da tela, foi que me dei conta do bando.
É tudo um grande sonho. Lembrei que o Buda disse isso, talvez não com essas palavras.
Um dia vamos despertar. Ele disse isso também.
Em seguida, lembrei o Amor que sinto. Lembrei-me de ter falado, um dia desses, do quanto esse sentimento é vasto, intenso e muito silencioso. E enquanto admirava a cor que enfeitava cada um dos indivíduos visitantes do pátio, levantei-me com muita cautela, para não ser notada. Naquele vagar, abri a porta de vidro. Encarei por mais algum tempo, já com o celular na mão para sacar um registro de imagem. Pensei até mesmo em fazer um vídeo, talvez.
Com um movimento que se assemelhava a tai-chi — não que eu seja uma praticante dessa arte marcial antiga –, levantei a perna direita. Eu ainda encarava os indivíduos no jardim, de olho principalmente em um cujo peito era enfeitado por um tom meio verde amarelado cintilante.
Minha perna descia, eles comiam; meu calcanhar encostava no piso, eles continuavam a matar a fome.
Quando os dedos do pé encostaram no chão — às vezes, o mais suave dos movimentos causa a mais intensa onda –, naquele momento sutil, todos, como se tivessem ensaiado a vida inteira, levantaram voo. Ao mesmo tempo.
O som de cem asas pequeninas me envolveu como se fossem um gigante a me abraçar. Ou melhor, eles são, nós somos o gigante. Lembrei-me de Hitchcock; lembrei-me do dia em que Clarice, a gata branca que mora comigo, pegou um pássaro com a boca, e recordei um apartamento onde, à janela, eu me sentia dentro da copa de uma árvore na companhia dos pássaros, há vinte anos. Quis abraçar quem amo, e abracei em espírito. Quis também dizer ao mundo o quanto o gigante é grande e que todos nós também voaremos um dia, assim, simplesmente assim. De repente, na intensidade de uma onda dessas.
Hoje é hoje. Agora. Depois e amanhã são apenas palavras, sssim como ontem. Então, joguei pedaços de maçã no gramado. Retornei à escrivaninha e contei do dia em que, espalhados pelo gramado, havia cinquenta pássaros a se alimentar.
Imbituba, 10 dias antes do início da primavera, 2024.
Bhuvi Libanio é autora de Livro de inutilidades amorosas, publicado em julho de 2024 pela editora M.inimalismos: https://www.editoraminimalismos.com/product-page/livro-de-inutilidades-amorosas-de-bhuvi-libanio