Registro XX— Um dia bonito

Bhuvi Libanio
4 min readSep 29, 2023

Sem fronteiras《registros aleatórios de uma jornada não planejada》

[Este texto foi escrito em um tempo imensurável. Quinze ou vinte e três minutos, três horas, enquanto comia maçã, debaixo do chuveiro, nos corredores do mercado… Localizar minha escrita no tempo e no espaço seria, em certo sentido, leviano. Escrevo enquanto respiro e a vida percorre-me.]

Notei a beleza do dia quando, parada no sinal de trânsito, atrás de uma longa fila de carros, olhei para o lado — no celular tocava “All I Want is You”, de Barry Louis Polisar — e vi um abrigo, desses que podemos chamar de… Não sei! Falta-me a palavra. Havia bancos como os de praça encimados por uma estrutura de vigas de concreto, perpendiculares ao horizonte, onde “terminava” o corpo de água brilhante, azul esverdeado. Do lado direito, um coqueiro parecia estar em plena adolescência, nem alto nem baixo, nem vistoso nem feio. Do outro lado, uma bougainville ostentava em rosa vívido anúncios de que a primavera chegou. Debaixo daquela estrutura, sentados em um dos bancos, um casal se abraçava. Em frente a eles, estava estacionado um carrinho de bebê azul marinho, com rodas e tudo o mais que carrinhos de bebê normalmente têm do lado de fora — o conteúdo interno, não consegui avistar, mas acretido que existia ali uma criança. A beleza do dia me bateu suave como o canto dos pássaros que me despertaram de manhã cedo e intensa como meu Amor. E eu pensei na breve prece que fiz ao enterrar o pequenino rato que poucas horas antes encontrara morto, com a cabeça arrancada e as minúsculas entranhas expostas, na sala de TV da casa onde moram as duas gatas das quais cuido (temporariamente). Jamais saberei quem decapitou aquele ser e também não sei se a morte foi de uma fêmea ou de um macho — algumas coisas, nunca saberemos. Mas que diferença isso faria?

Foi um dia de folga. Queria comer sanduíche com batata frita e guaraná. Muito açúcar e gordura, porque normalmente isso não está no meu cardápio. Mas o restaurante do rei do burger estava fechado para reforma, naquela praça de alimentação. Comida chinesa foi minha alternativa. Será chinesa mesmo? Quem cozinhou, não vi. Quem me cobrou era chinês. Mas os ingredientes e o lugar eram brasileiros. Qual era a nacionalidade da comida? Talvez eu devesse dizer que “comi à chinesa”. Mas, também, qual é a diferença?

Depois de degustar o almoço e tomar água, conferi o celular. (Quando você verifica se recebeu mensagem, normalmente espera ter recebido alguma ou verifica apenas por verificar?) Esperava ter recebido uma mensagem, mas não aquela. Não pensava que pudesse ser lembrada da forma como fui. Há uma aleatoriedade nas conexões estabelecidas entre humanos, não humanos, coisas, lugares e tempos. Não se pode esperar nada. Mas eu, às vezes, espero. Espero o documento ficar pronto, a água ferver e depois o macarrão amolecer ou o ovo endurecer. Espero a fome para comer. Espero a sede para beber. Espero a bateria acabar para carregá-la. Espero algumas coisas, outras não, porque as conexões são aleatórias, não é possível prevê-las. Isso faz muita diferença.

Precisei limpar o tapete onde o pequenino rato fora degolado. Foi fácil. Não há vestígios materiais, concretos dele. Mas ele existiu. Existirá enquanto eu e as duas gatas ainda existirem? Existirá enquanto este texto e enquanto você que leu este texto existirem? E o bebê que não vi? O carrinho é mesmo prova de sua existência? Certa vez, vi uma mulher, em um bairro de outra capital brasileira, empurrando um carrinho dentro do qual havia uma boneca. Ela sorriu para mim, sorri para ela. Estávamos felizes.

Havia uma rato na sala de TV e ela estava morto. (Revisores, por favor, não corrijam a inconsistência de gênero.) E eu pensei: isso pode ser um presságio — de um dia bonito. E então vi o casal com o carrinho de bebê à beira mar em um dia ensolarado antecedido por um ciclone e alguma destruição.

No fim, talvez o dia tenha sido bonito porque você está lendo este texto. Mas e se não estiver? Se você não se der conta de que eu tive um dia bonito, ele terá acontecido? Para mim, sim. Mas independentemente disso, você perceber, reconhecer, valorizar a existência de outra pessoa faz muita diferença. Para mim e para você — para nós. Nossa relação, tão aleatória, transforma coisas e seres, humanos e não humanos.

(Imbituba, em um dia bonito e doce | como maçã | quase todos os dias | são.)

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Bhuvi Libanio
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Written by Bhuvi Libanio

Registros aleatórios de uma jornada não planejada.

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