Registro V — documento sem titulo

Bhuvi Libanio
2 min readJul 10, 2022

--

Sem fronteiras《registros aleatórios de uma jornada não planejada》

Na tela, o tique-taque de um metrônomo provocou uma lembrança. Uma garrafa de bourbon sobre o balcão e um homem a chorar a ausência de seu Amor me colocaram sentada diante do computador no qual abri um “documento sem titulo” — assim mesmo, letras minúsculas sem acento — para ver o cursor piscar e dar ritmo ao meu silêncio, que depois de um tempo interrompi com o agradável som de teclas a construir uma memória. Será verdadeira?

(Escrevi duas páginas. Apaguei. Estava perdida, na falta de sentido.)

Naquele ano, quando fui embora, dei meu metrônomo a um Amor, alguns dias depois de perder todos meus registros fotográficos de uma década e meia — essa marcação não importa; tenho cabelos brancos; sento-me ao sol; quem tem ouvidos, ouça: ao vencedor, a árvore da vida. Minha memória, há muito, está sem ritmo. Sem noção do tempo. Por isso, decidi estudar uma língua que desconheço totalmente, para desafiá-la, e não por isso, penso em criar uma personagem raposa ou leão ou rato ou elefante, só para responder, durante a próxima efêmera anamnese do doutor, que sou fabulista.

Tento lembrar o nome da cor do líquido que o homem derramou no copo. Falta-me a palavra. Um dia talvez nenhuma sobrará. Uma a uma elas despencam do meu léxico pessoal. Ainda existem, mas não me lembro delas. Não sinto ansiedade, porque sei que a cor do bourbon continuará a mesma, ainda que demore algumas linhas para eu me lembrar que é âmbar.

Tentei chorar, como ele, a distância de um Amor. Não consegui. Tentei compor um poema, uma declaração. Não consegui. Há dias tento me expressar e elas, palavras inquietas, faltam-me. Quero dizer das delícias e das dores de envelhecer. Quero contar que me apaixonei. Quero compartilhar aprendizados, dúvidas, alegrias. Quero contar as crônicas do dia a dia.

Quero contar a história de como perdi a memória mas não me lembro o que contar. A percepção do toque é somente agora. Depois, passou. Mudou de ritmo.

A maresia oxida tudo. A paisagem atrás da névoa só é apreciada por quem tem olhos capazes de sentir, não de ver. Enxergar são outros quinhentos. Os sentidos são diabólicos quando não passam pela alma. Incólume, somente o que não é de ferro.

Movimento-me, conforme o fôlego que ainda tenho. Lanço à distância as brumas que cegam — isto ou aquilo que se espera de alguém — e caminho com os olhos fechados e o coração escancarado na direção dos olhos dele. Vejo belezas. Sou frágil, vulnerável, inocente. Ao abraçá-lo, mergulho. Esqueci os limites e não há distância que me separe do agora. Eu me acolho nele.

Faltam-me palavras.
Falta-me você.
Transborda de mim, Amor.
Quem tem alma, sinta.

Sign up to discover human stories that deepen your understanding of the world.

Free

Distraction-free reading. No ads.

Organize your knowledge with lists and highlights.

Tell your story. Find your audience.

Membership

Read member-only stories

Support writers you read most

Earn money for your writing

Listen to audio narrations

Read offline with the Medium app

--

--

Bhuvi Libanio
Bhuvi Libanio

Written by Bhuvi Libanio

Registros aleatórios de uma jornada não planejada.

No responses yet

Write a response