Ou fato ou ficção
Para tentar estimular o sentido, levantou-se da cama e, meio trôpega, buscou na estante o livro “Flores”. Talvez Mario Bellatin pudesse ajudar a encontrar o olfato que o vírus tomou dela.
Cientistas de Harvard afirmaram que a anosmia, sintoma comum em pacientes com covid-19, é consequência de um ataque às células que auxiliam o sistema olfativo. Para alívio das pessoas anosmiáticas — alívio, como todos os demais, é um conceito relativo — , o problema não está nas células neuronais.
Mas ela não entendeu muito bem a explicação. Na prática, todas as flores passaram a ser de plástico.
Na onda das teorias acerca do novo habitante desta Terra, arriscou uma: “sars-cov-2, é nome de alienígena”. Alienar, alienista, alienado, alienígena são palavras com a mesma raiz — o sentido paira em torno de “outro, estrangeiro”. Entretanto, a origem do problema não está do lado de fora. Um vírus é tão forte quanto for a fraqueza do organismo que atacar e vice-versa — força e fraqueza também são relativos; mas, não se engane: não há culpa nessa relação.
Sem um dos sentidos, perguntou-se, o sexto passa a ser quinto e ele perde suas características peculiares?
As perguntas mais inquietas e barulhentas sempre são tentativas de prever o futuro. Esquecerá o aroma do jasmim? O cheiro da pessoa amada? O perfume da chuva por vir? Ah! As manhãs de outono! Mas hoje é inverno, em pleno verão carioca.
De certas coisas não nos esquecemos. “Fazer amor é como andar de bicicleta ou dirigir um carro”. Quem teria expressado tanta sabedoria? Cogitou telefonar para dizer que não consegue mais pensar em romance, como não consegue planejar as refeições. Um elemento importante está ausente.
Quando você come, uma porção do sabor é memória, assim como quando você vê algo. O sentido busca a lembrança de experiências anteriores com aquilo que precisa identificar. Ao usá-los de modo inconsciente, nenhum sentido é imparcial, afinal, tudo é relativo. Mas se limparmos a memória e começarmos tudo de novo, por exemplo, cheirar sempre pela primeira vez, ainda que cheire todos os dias, o cangote da pessoa amada, entregar-se, sem conceitos prévios e sentir o agora, deixaremos de experimentar o mundo a partir de aspectos grosseiros, de características condicionadas, e tocaremos o sutil.
Levantou-se para fazer um sanduíche — pão francês, quatorze folhas de espinafre, onze folhas de agrião, tofu marinado, azeite e mostarda — e lamentou que a combinação tivesse gosto de chuchu sem tempero. Não telefonou por medo de que a conversa tivesse cheiro de nada.
Conseguiu identificar a estranheza: sem olfato, os sons não eram os mesmos, como quando tira os óculos e não escuta bem. O mundo sem cheiro ficou mais silencioso. Sem aroma, tudo parecia ficção.
Faltava-lhe apenas a consciência de que para conhecer a realidade, é preciso soltar-se e voar, ir além, fluir para a terceira margem, onde está o verdadeiro sentido.
~Rio de Janeiro, 4 de fevereiro, 2021~