Registro XII — Graça divina
Sem fronteiras《registros aleatórios de uma jornada não planejada》
Hesitei. Até um diálogo íntimo se constituir em uma percepção de que sempre escrevo sobre coisas pessoais, porque são também coletivas. Os processos do corpo são transições comuns. Então por que o tabu?
O corpo que tem útero é velado. Seus órgãos escondidos se expressam ciclicamente. Em sangue. Saem da caverna escura para escrever o que poucas pessoas querem ler.
Força e fragilidade se misturam em um amálgama que forma o ser em matéria indefinida, ilimitada, livre. E de tão livre que é, poucas pessoas querem ler.
É dolorido. Na carne do órgão e na alma. Como todo processo é. Nascer dói; morrer dói. No intervalo, vivemos os ecos da dor e esse incômodo constante do estar físico, que é um eterno transformar-se. Devido a essa constante metamorfose, poucas pessoas querem saber.
Muitas querem controlar.
Na inconstância, buscamos por certezas, solos firmes onde pisar, sem saber que tudo é nuvem. Ainda pratico a arte de andar, para aprender. A toda queda, verto lágrimas. Recentemente, lembrei-me do choro das tantas vezes que nasci. Engatinhar se faz uma saída, quando erguer-me parece impossível. Porque é crucial manter o pulsar do coração.
Meu corpo tem seios, vagina, útero, ovários e hormônios. Meu corpo sangra. Antes, apenas quando algo se rompia, quando a pele se abria; desde 1985, algo se rompe em ciclos também. Eu me quebro em meno (do grego, mês) rreia (do grego, fluxo). E o fluxo, dizem, é fértil, até a “rreia” virar “pausa”.
Este corpo, na lei, tem personalidade, que tem direitos “intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária […] pode-se exigir que cesse a ameaça […] e reclamar perdas e danos […] A vida privada da pessoa natural é inviolável”.* Mas tudo isto ao meu redor é social. Deste corpo, fazem objeto banal. O homem, tão exposto, tão cheio de si, tão dono do solo estável e sagrado que não existe, entende em sua ignorância que estamos a servir. Mas ele se esquece que se é Deus, é um, é eu, é nós.
Somos.
Cansei. Não porque avizinho o meio século de vida. Exauri-me. Cansei. Não porque trabalhei, assistindo pela mesma janela as trocas de turno entre sol e lua. Desgastei-me.
Para mim, uma das belezas da maturidade é aprender a ler e escutar. É saber respeitar. É cuidar de mim. Não da identidade social. Não do que uma pessoa individual vê quando olha para meu corpo, mas do que a existência incorporada essencialmente é. Esta, eterna; aquela, impermanente, de tal fluidez que, ao ler este texto, quem lê já não conhece quem escreveu. Esse fluxo importa.
Na abertura de minha caverna, enquanto choro em vermelho, deixo sangrar as feridas para nada mais restar em lamento.
E quando a pausa mensal chegar, consciente da dança dos hormônios, acolherei a liberdade para me adaptar a um ritmo novo, um baile sem máscaras, uma valsa de passos leves.
Envelheço. Eis a graça divina.
Imbituba, março de 2023.
[*Lei Nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 — cap. 2, art. 11–21.]