A última vela
Escrevo no escuro. A última vela acendi hoje de manhã. Espero que minha oração surta efeito. Estou fechada aqui para evitar que elas entrem depois que consegui me livrar das três que nos atacaram. Uma para cada ser aqui de casa. Foi pouco antes do pôr do sol. Agora, o zumbido que ouço é do silêncio nos ouvidos.
Depois de um almoço saboroso no melhor bistrô da cidade, na companhia de amigas e amigos, e de um passeio rápido até o mercado, sentei-me na varanda para ler. Até que o frio me convenceu que era hora de recolher a roupa do varal e entrar.
Eu dobrava as blusas quando Virgínia, uma das felinas que moram aqui em casa, entrou acelerada e pulou na mesa Da mesa para a geladeira Da geladeira para a mesa Da mesa para a cama Da cama para a prateleira Da prateleira para a cama Saiu acelerada Voltou e retomou os saltos mirabolantes…
Até que consegui acalmá-la. Por alguns segundos.
Então vi as três invasoras.
Zuniam tão desesperadas quanto a gata. A outra felina se encolheu e não foi picada — parecia estar dentro de um casulo imaginário; só os olhos mexiam. Sem saber o que fazer, pedi às abelhas que saíssem. Até que uma delas se enroscou em minhas madeixas — são doces?
— Há muito tempo alguém não se enrosca nos meus cabelos. Não quero quebrar o jejum com uma abelha.
Não! Obviamente não tive tempo de pensar isso enquanto uma gata corria desesperadamente de um lado para outro e uma abelha tentava se livrar de meus fios grisalhos — talvez não sejam doces, afinal. Sacudi. Sacudi com toda minha energia. Depois peguei um pano e girei no ar.
Duas saíram. A terceira — talvez aquela antes agarrada em mim — pousou na janela fechada. Abri o vidro. Voou.
Convoquei as gatas para que entrassem. Pareciam me entender. Fechei a porta de vidro. E acompanhei o voo frenético daqueles insetos. Eram muitos.
Na vizinhança começaram a gritar. Diferentes vozes, diferentes tons. Um homem correu pela rua tirando a camisa. Outro saiu em disparada atrás desse — um deles levava consigo dezenas de ferrões e depois a ambulância o levou para o hospital. Choros, clamores e gritos. A vizinha do lado sofreu três ferroadas.
Examinei Virginia. O olho esquerdo meio fechado e a orelha, do mesmo lado, sensível ao toque. Escorria-lhe uma lágrima. Clarice, deitou-se ao lado dela.
Por celular conversei com a vizinha da frente. Foi quando descobri que o ataque se deu depois que um sujeito, vestido de apicultor, desabrigou, sabe-se lá para quê, uma colônia que as operárias construíram em um terreno desocupado aqui ao lado.
E nesse momento, a luz se apagou. O sinal da operadora de celular também, a geladeira desligou e o breu tomou conta. Foram elas que fizeram isso, ou seria apenas uma terrível coincidência?
Será o apocalipse? Qual é a grande revelação? Teria sido aquele o último almoço?
Não sei. Mas a última vela usei em oração. Que bom.
O silêncio é sepulcral. Apenas o vento se manifesta. E os olhos não alcançam qualquer distância, a não ser a tela do computador ou o palmo que enxergo à frente do nariz quando a utilizo como lanterna. Mas isso, a porcentagem de bateria me diz que não será por muito tempo.
Esta casa contêiner já foi apelidada de “yellow submarine”, barraco e vagão. Hoje, faz as vezes de “bunker”, e se eu tiver sorte, hermeticamente fechado.
Ouço batidas no vidro do basculante. Não ouvi trombetas ainda. Talvez não seja o fim. Mas pelo menos, a última vela usei hoje de manhã.
Amém.
Imbituba, 13 de novembro de 2021